por Aires Ferreira
(Apresentado no Encontro Nacional Evoliano em 11 de Setembro de 2014)
Introdução
Uma sociologia contra a sociologia
A Sociologia surge, como diz Agnes Heller, como um mecanismo de
desfetichização da modernidade, mas, ao mesmo tempo, imbuída da
necessidade constante de reificação de seu objeto e admitindo o
paradigma moderno como sub specie aeternitatis, que além de inexorável e
irrevogável teria açambarcado a totalidade das relações sociais através
da substituição da estratificação pela divisão funcional orgânica.
Ainda segundo Heller, a pré modernidade não demandaria uma ciência
social, nem mesmo poderia cogitá-la, por possuir uma outra estrutura de
certificação ontológica.
Um dos grandes problemas em lidar com esta concepção de Ciência Social
reside no fato da modernidade, por vezes impor-se muito mais como
discurso que como fato social, e na dificuldade em reconhecer a profunda
cisão que divide o universo social em enclaves modernos e pré modernos
que se expressam em relações de tensão e acomodação cuja clivagem poucas
vezes se mostra relevante aos estudiosos desta disciplina.
É justamente no bojo desta clivagem que, no início do século XX,
Oliveira Vianna vai estruturar seu pensamento na dicotomia entre o
Brasil real, do direito costumeiro das gentes, de onde emanariam as
forças vitais da nacionalidade; e o Brasil juridicamente normatizado por
um direito intelectual, alheio às formas irracionais e arcaicas daquele
primeiro Brasil.
A essência da tese de O. Vianna, sobre nosso devir civilizatório,
poderia ser descrita, muito resumidamente, como a que afirma que a
grande componente social da civilização Brasileira em forja, exceto por
recortes específicos, não abraçou o projeto de modernidade do
Liberalismo e acalenta ainda as estruturas epistemológicas e culturais
pré modernas que, poderíamos dizer, a aproximam mais do “Oikos” grego
que do cosmopolitismo global contemporâneo. Lendo-se aqui, esse Oikos,
como a grande “fazenda” doméstica, autoritariamente dirigida, por um
príncipe ou senhor territorial, patrício, cujo motivo não reside na
aquisição capitalista de dinheiro, mas na cobertura natural e organizada
das necessidades de tal senhor; tal como diz Weber.
Esta cisão assinalada por Vianna assenta-se sobre a polarização entre
Estado e Sociedade, enquanto estruturas que apresentam naturezas e
interesses antagônicos. Aliás, a natureza deste direito que emana do
caráter sociológico, nacional das gentes e de sua relação com o aparato
legal “científico” e profissional que se encarrega de asfixiar a
vitalidade do direito natural “Folkish” destas gentes foi, ao longo da
vida de Vianna, mote fundamental de uma carreira que conheceu pouca
distinção entre suas duas vocações, acadêmica e pública. Para Vianna, a
forja de uma civilização nacional Brasileira passa pela correta
adequação desta relação Estado/Sociedade, através da racionalização das
instituições políticas de uma forma não apartada entre a Lei Escrita e a
Consuetudinária, mas em sua conciliação orgânica. À maneira de
Mannheim, que em Ideologia e Utopia dirige sua crítica ao aparato
burocrático racionalizador e unilateral, dizendo do “Funcionário” que:
“ele não compreende que toda ordem racionalizada é somente uma das
muitas formas em que as forças irracionais, socialmente concorrentes,
são reconciliadas”; Vianna acrescentaria, dando como indiscutíveis as
“preferências tenazes” fixadas na origem da formação de qualquer
sociedade, que é preciso contar com esses “fatos de civilização” caso
não queiramos ver irreconhecivelmente deformadas as instituições
racionalizadoras que se lhe queiram impor.
Ao passarmos em revista a conjuntura desta relação entre estado e
sociedade no que tange à formação das instituições políticas no Brasil,
percebemos que num contexto onde a “Liberdade” veio antes da
Organização, estas instituições têm sido desde sempre aparelhadas, e
após o fim do Império, o Brasil sai de um Feudalismo prático para uma
República teórica.
Organização x Liberdade
Eis um binômio fundamental na análise de Vianna sobre o
subdesenvolvimento das instituições políticas no Brasil. Como bem coloca
Paulo Edmur de Souza Queiroz, em “Sociologia Política de Oliveira
Vianna”, “Para Oliveira Vianna o pensamento político que Mannheim define
como o intelectualismo burguês liberal-democrático, a partir do século
XIX, não fez mais, no Brasil, do que demonstrar a tese de que na
aplicação intelectual, pura, de um pensamento político a uma realidade
sociológica, esse pensamento é inevitavelmente deformado por essa
realidade.” (1975, p. 36) Vianna percebia no Liberalismo um novo modelo
político-ideológico importado pela intelligentsia pré-republicana que
aprofundaria a dissociação entre Estado e Sociedade, e do encontro entre
as estruturas semifeudais estabelecidas, com ideologia e uma norma
jurídica burguesas consuma-se um panorama onde o aparelho estatal,
redesenhado para o livre empreendimento individual torna-se a presa
perfeita de um conjunto de facções autocráticas representadas pela
junção das velhas oligarquias que sobrevivem, adaptando-se às novas
instituições representativas, com os novos especuladores financistas.
Clãs eleitorais formavam partidos que se organizavam ao sabor de
interesses pessoais, preterindo a ideia da unidade e da centralização
como meios de organização nacionais. Com a República, se aprofundaria o
trabalho de desarticulação e fragmentação desta unidade às escusas de um
federalismo, como diria Vianna, “mal compreendido e mal praticado, sob o
ilusório pretexto de realizarem, assim, a liberdade.”
A polarização entre organização e liberdade, cuja forja civilizacional
Brasileira tem sido desde sempre refém, pode ser encarada por outro
binômio, o da afirmação do indivíduo, contra a afirmação do grupo. A
estruturação Liberal do Estado Brasileiro, além de ter cavado um abismo
entre o Brasil das gentes e o Brasil legal, afastando o homem-massa das
instituições políticas; aprofundou também seu insolidarismo e
indiferença às coletividades. Dos núcleos sociais familiares e
profissionais, até as coletividades culturais e de seu senso de
nacionalidade, a afirmação do indivíduo tem preponderado sobre a
afirmação do grupo.
Vianna nos fala como o espírito de comunidade tem sido mutilado desde a
mais remota ocupação de nosso território, onde a dispersão e o
isolamento darão lugar a um tipo humano que não vela ou se interessa
pelo bem comum, senão pelos seus próprios bens particulares e que não
está disposto à cousa pública.
Resta-nos assim questionar, como realizar a construção desta mentalidade
solidarista, como desenvolver este espírito comunitário?
Para Vianna, além das forças armadas e do escotismo juvenil, o grande
foco metodológico desta transformação caberia às organizações Sindicais e
Corporativas.
A Consciência Corporativa
Tendo patente que a Democracia Liberal é incompatível com o
desenvolvimento nacional, por evasão direta de focos prioritários, que
além dos já citados, incluem ainda soberania, infra estrutura, autonomia
energética e industrial, ordem social e controle da “stasis”; Oliveira
Vianna elabora ao longo de suas obras, uma complexa pesquisa do
maquinário teórico Corporativista, entendendo as Corporações em um
contexto onde seriam o único fundamento possível do poder público.
Como Durkheim, que via o Estado como órgão especial destinado a gerar
representações de valor coletivo, para Vianna, num devir civilizatório
como o Brasileiro, fundamentalmente isolacionista, insolidarista e
anticomunitário, como descreve fartamente em suas obras, principalmente
em “Instituições Políticas Brasileiras”; o aparelho Estatal deveria
encarregar-se da politização da Sociedade através das Corporações,
organizando o corpo social a partir da noção de grupo ao invés da noção
de indivíduo, ensejando assim a ascensão do grupo como sujeito de
direitos e faculdade de ação daí decorrente.
Vianna vai buscar no Realismo Jurídico de Brandeis, a concepção de
individualismo grupalista, que afirma que é no grupo que o indivíduo se
realiza em sua plenitude. Vai mais além, e de Marcelo Caetano extrai a
definição de que “há regime corporativo sempre que uma atividade é
representada e regulada por aqueles que a desempenham”; atando a
Manoilesco, para quem o corporativismo puro seria o sistema político em
que a fonte do poder legislativo supremo é constituído pelas
Corporações.
No esteio destes princípios, o poder não emanaria do “povo massa”,
anônimo e desqualificado, mas de forças coletivas economicamente,
cultural e socialmente ativas, e institucionalmente encarregadas de seu
próprio destino. O Estado Corporativo seria, neste contexto, a
incorporação do “Volkgeist”, o instrumento que realiza a finalidade
suprema da nação, agindo como interventor econômico, gestor de conflitos
e modulador de preços no lugar do livre mercado, trabalhando sempre no
sentido da supressão do antagonismo de classe através da conciliação
entre capital e trabalho.
As Corporações, sendo estes corpos de natureza pública e colocando-se na
posição intermediária entre os indivíduos e o estado, tornar iam-se
eficientes substitutos da democracia parlamentar liberal, com a
instituição da Câmara Corporativa, tendo a função legislativa.
De maneira objetiva e sintética, podemos afirmar que Vianna buscou
construir uma concepção de Estado Corporativo com as seguintes
características:
• Sem caráter Totalitário, dada a influência de Pirou, baseadas na ideia
da convenção coletiva e no caráter fiscalizador do Estado; mas
rejeitando a concepção de Manoilesco, onde as Corporações estariam
sujeitas ao controle do Partido Único.
• Colaboracionista, no sentido clássico da “terceira solução”, onde
através da conciliação entre Capital e Trabalho o antagonismo de classe
seria suprimido em função do interesse supremo do Estado.
• Antiliberal, do ponto de vista econômico, já que o Livre Mercado não
seria o agente modulador de preços e que seu saneamento se daria no
equilíbrio entre oferta e procura; e do ponto de vista ideológico, visto
que a concepção de grupo teria mais força que a de indivíduo e o
capitalista não seria alvo da superestimação dada pelo estado burguês,
mas apenas o cumpridor de uma função social cujo fim último seria a
promoção do interesse nacional.
• Apartidário e Unicameral, pois tendo as Corporações e convenções
coletivas no papel de Legisladores cessaria a necessidade de qualquer
organização partidária paralela.
Percebemos, no esboço que aqui se desenha um programa de reestruturação
radical do modelo societário Brasileiro a partir das brechas deixadas
por um liberalismo que se encastelou em um estado alienado das
preferências tenazes do Brasil real.
Malgrado erros e acertos, concordâncias e discordâncias, o ponto de
vista ideologicamente eclético e cirurgicamente realista de Oliveira
Vianna sobre a adaptação do ideal corporativo à realidade Brasileira
toca em feridas até hoje expostas. O Zeitgeist que nos dirige na
Pós-Modernidade é refratário ao ideal corporativo, em grande parte por
conta da atomização do indivíduo em uma socioesfera fortemente
insolidarista e rompedora do tecido comunitário, em especial no Brasil. A
concepção corporativa de Estado fornece, porém, um antídoto real ao
esvaziamento político do Estado e sua predação por uma sociedade civil
aparelhada pela via cultural. Aqui no Brasil, o Estado se tornou refém,
neutralizado, despolitizado e burocratizado, de um poder que se exerce a
partir de uma base metapolítica e pluri-ideológica, que se autodenomina
como "sociedade civil organizada". Esta S.C.O. é justamente a
polarização ideológica que busca fomentar uma opinião pública mobilizada
contra os mais vitais interesses do país, estratificando o corpo social
em bases antagônicas e totalmente desconexas da produção, da cultura e
dos seus reais enclaves de poder. As Corporações são o antídoto do
"onguismo" e expressão absoluta e radical de uma verdadeira sociedade
civil, que no Brasil ainda está por ser organizada.